domingo, 4 de agosto de 2013

Depois das Ruas - Capítulo 2 - Despertar

Se ainda não leu, veja os capítulos anteriores deste conto:

Capítulo I - Impacto de Uma Noite


II - Despertar

      Ao abrir os olhos, o panorama a seu redor mudara completamente. Pedro estava num cômodo acolhedor de alguma residência, deitado sobre um sofá de tecido macio e envolto pelo aquecimento agradável de um cobertor de lã. A claridade suave da manhã entrava pelas cortinas translúcidas banhando de luzes reconfortantes o ambiente tranquilo, decorado com o doce encanto da simplicidade. Que lugar seria aquele? As últimas lembranças oriundas do panorama confuso de sua memória em nada incluíam aquela sala: cenas do alvoroço na avenida, da tensão, da depredação... Pedro teve a reação automática de levar a mão à fronte, onde pensava ter sido atingido por um bastão! Sentiu uma dor aguda ao tocar o supercílio direito. Percebeu um curativo! Tinha um curativo... Que bom! Alguém cuidara dele! Instintivamente passou a palpar o próprio corpo à procura de fraturas. Devido à “osteogenesis imperfecta”, o jovem tinha consciência de ser essa uma probabilidade bem concreta! Graças a Deus, parecia estar inteiro! Mas aonde se encontrava?

      Levantou-se ainda um tanto sonolento e procurou descobrir o que acontecia. Parecia estar sozinho no ambiente. Uma sala moderadamente ampla, com poucos móveis. O sofá onde despertara, em tecido cor de creme; duas poltronas formando um conjunto; uma simpática mesa de centro; mais adiante, outra mesa, essa de formato oval, rodeada de quatro cadeiras elegantes; quadros, onde se viam figuras abstratas, espalhados pelas paredes; um corredor guarnecido por duas portas de cada lado e alguns poucos outros objetos: vasos de flores alegres e, num canto, perto da ampla janela, uma espécie de escrivaninha onde repousava um único e altivo porta-retratos. O rapaz aproximou-se e viu a imagem de uma mulher ruiva, de cabelos cacheados e olhos verdes, de uma vivacidade intrigante. Seu busto coberto por uma blusa cor de carmim, não ostentava nenhuma jóia ou bijuteria. Não parecia com ninguém de quem se lembrasse. Quem seria? Seria a dona da residência? Enquanto devaneava, chegou-se para perto da janela por onde entrava a luz serena da manhã. Percebeu estar num edifício. Lá em baixo, pelas ruas, poucas pessoas caminhavam com tranquilidade... Em nada lembravam a agitação de suas últimas recordações... Que ruas eram aquelas? Pareciam-lhe familiares, mas não conseguia se localizar precisamente! Viu ao longe uma construção conhecida! Sim! Era o MASP, o “Museu de Arte de São Paulo”. Estava, portanto, nas proximidades da Avenida Paulista. Mas tudo estava diferente... Começou a reparar nos detalhes... As construções, a vegetação, as roupas das pessoas, os veículos pela rua... Não reconhecia aquele tipo de veículos... Nunca vira nada igual! Tudo era o mesmo, mas tudo, estranhamente, estava diferente.

      Um ruído fraco, porém agudo, no cômodo ao lado, despertou nosso amigo do recolhimento de suas indagações! Havia alguém na casa! Pronto! Descobriria agora o que estava acontecendo! Deveria ser a dona da casa no aposento ao lado. No seu ímpeto juvenil desprovido de maiores cuidados, dirigiu-se, pela porta entreaberta, ao cômodo de onde parecia ter vindo o ruído que escutara:

      - Tem alguém aí? - Perguntou ao mesmo tempo em que atravessava a porta para o recinto ao adjacente...

      Para seu espanto, não uma mulher ruiva de meia idade, mas um senhor já envelhecido de aparência simpática e cabelos brancos, era quem estava do outro lado. Ao fogão, o senhor preparava qualquer coisa de aroma agradável. Parecendo surpreso, ele virou-se, no instante exato do adentrar do jovem na copa-cozinha iluminada:

      - Ora, ora, ora! O nosso jovem revolucionário já despertou! Pensei que você dormiria mais algumas horas. De fato eu não me lembrava bem... Sabe como é... É a idade! - Mas interrompendo, como se atentasse repentinamente para algo, prosseguiu de outra maneira - Mas que anfitrião de péssima qualidade estou sendo eu! Venha, meu amigo, sente-se! Você não sabe a alegria que me dá essa sua visita! Eu tinha até me esquecido da sua vinda! Venha, Venha, venha! Sente-se aqui! - e puxou uma cadeira para o jovem, ante a mesa circular na lateral do cômodo, onde um café da manhã com frutas, pãezinhos apetitosos, suco e outras guloseimas estava servido para duas pessoas.

      Depois, o gentil anfitrião dirigiu-se novamente ao fogão, onde alguma iguaria delicadamente perfumada se escondia sob a tampa duma frigideira.

      Enquanto observava seu anfitrião afastar-se mancando da perna direita, um ponto de interrogação do tamanho de sua enorme surpresa estampou-se no semblante do rapaz! Quem era aquele senhor? Que gentileza era aquela? E ele próprio, Pedro, um jovem revolucionário? Justo ele? Participara de um movimento pela democracia, isso era certo, mas daí a ser um jovem revolucionário distava uma enormidade!

      O simpático velhinho deve ter percebido a inquietação íntima do adolescente, porque de imediato pareceu refrear seu declarado entusiasmo e adotou um tom mais brando na voz:

      - Venha, meu rapaz, não se inquiete... - disse, aproximando-se carinhosamente do menino - Sei que você deve estar cheio de perguntas e - eu lhe prometo! - vai ter resposta para todas elas. Mas por enquanto, vamos nos sentar e comer alguma coisa, porque você já está há muitas horas sem se alimentar e deve estar faminto! Enquanto tomamos nosso café da manhã, enquanto repõe suas energias e se tranquiliza, poderemos conversar e, aos poucos, você esclarecerá suas dúvidas. Confie em mim...

      A ternura e mansuetude no comportamento paternal daquele velhinho e, ao mesmo tempo, um estômago vazio começando a reclamar, combinaram-se como argumentos suficientes para fortalecer a decisão do menino de sentar-se à mesa. O ancião acabou de preparar e serviu uma aromática omelete de queijo e ervas, cuja fragrância convidativa falava a linguagem exata do apetite do rapaz. Aliás, tudo naquela mesa hospitaleira parecia falar a linguagem exata do apetite do rapaz: havia morangos frescos, um prato onde o afável senhor arranjara com harmonia algumas fatias de Kiwi, pãezinhos do tipo ciabata, os seus preferidos e, inclusive, um belíssimo copo rubro de suco de melancia, também o seu predileto. A delicadeza, o perfume e o frescor das iguarias daquele café da manhã preparado com evidente ternura e simplicidade, tiveram um efeito sedativo sobre o coração irrequieto de nosso personagem. Ambos aproveitaram esses instantes de refeição frugal sem muitas palavras. Estabeleceu-se uma quietude serena que, ao lado do efeito reconfortante do desjejum, também saciava e aproximava o espírito daqueles dois convivas.

      Sentindo-se confortado com a atenção do velho e com a saciedade que ia experimentando aos poucos, o rapaz foi o primeiro a quebrar o silêncio:

      - Quem é a mulher?

      O velhinho, absorto em seus pensamentos e ligeiramente entorpecido por aquele momento de serenidade, foi tomado de surpresa pela pergunta. Após um instante em que procurou situar mentalmente a qual mulher se referia a pergunta de seu jovem hóspede, o ancião, por fim, pareceu retornar ao mundo consciente:

      - Você deve estar se referindo à dama de cabelos ruivos no porta-retratos...

      O menino aquiesceu com a cabeça, enquanto levava à boca uma generosa porção de omelete - Hum hum... - foi o único som a escapar-lhe dos lábios.

      - Aquela - respondeu o venerando senhor, com o semblante iluminado - é Carmem! Uma alma boa colocada no mundo por Deus e que eu tive a felicidade de ter por esposa. Casamo-nos quando eu tinha trinta e cinco anos. Ela era dez anos mais nova... Sempre foi uma bênção na minha vida!

      - E onde ela está? - Emendou o menino, sem nenhuma cerimônia.

      Por um momento a fisionomia do ancião foi modelada por sentimentos indefiníveis... A luz que, há um minuto, refletia em seu semblante uma serena alegria, pareceu obscurecida por um resignado pesar. Elevou os olhos como se contemplasse o céu e retornou ao menino com voz suave:

      - Esse anjo, menino, está nos braços do SENHOR...

      O menino empalideceu! Não esperava. Nem sequer pensar nessa possibilidade. Não queria tocar num assunto delicado. Sentiu-se penalizado pela pergunta intempestiva! Calou-se! Novamente a quietude tomou conta do ambiente. Desta vez, um silêncio de semblantes pensativos, um silêncio de respeito e de meditação...


      Esse silêncio só foi interrompido novamente quando o som agudo de um "Bip" ecoou na sala ao lado.


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Gilberto de Almeida
04/08/2013


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