terça-feira, 6 de agosto de 2013

Depois das Ruas - Capítulo 5 - Lembranças de um Dia no Futuro

Se ainda não leu, veja os capítulos anteriores deste conto:

Capítulo I - Impacto de Uma Noite
V - Lembranças de um Dia no Futuro

      Eram aproximadamente dezoito horas quando os dois retornaram ao apartamento.

      O que acontecera durante aquele dia não se comparava a nada já vivido anteriormente pelo rapaz. O estranho, o inusitado e o impossível o haviam acompanhado desde o amanhecer até aquele momento, quando os últimos raios de sol anunciavam o crepúsculo. Encontrava-se em um sonho instigante do qual não conseguia e não queria despertar. Conhecera, acompanhando um senhor simpático que se dizia ser o próprio adolescente, porém sessenta anos mais tarde, no futuro, um mundo muitíssimo mais feliz e mais evoluído, se comparado àquele com o qual estava acostumado. Tivera revelações impressionantes, responsáveis por multiplicar em seu espírito juvenil o mesmo impulso que víamos mover nosso personagem, horas antes, rumo a ideais sublimes de justiça, de paz e de igualdade perante o poder político de seu país. Esse clima de excitação mental envolvera-o por completo. Não tentava racionalizar o irracional! Aceitava-o, vivia-o hipnotizado, nesse dia absolutamente peculiar.

      Recolhidos novamente ao conforto do lar, enquanto o Pedro maduro retirou-se para um banho reconfortante, o Pedro adolescente, pensamentos em ritmo acelerado, rememorava obsessivamente os colóquios que mantivera com aquela expressão carinhosa do seu próprio Ego, sessenta anos envelhecido:

      "- Me explique esse sistema de votações! Como é que isso aconteceu?” - Perguntara o garoto nessa tarde instigante e cheia de revelações.

      - Você deve se recordar melhor que eu, meu jovem, a respeito da véspera do dia de sua chegada por aqui, em dois mil e treze: aconteciam manifestações pela democracia no país... Pois bem, algumas pessoas, entre elas você mesmo, não se conformavam com a idéia simplista de que substituir governantes ou tomar medidas pontuais de punição contra esse ou aquele político corrupto, ou mesmo outras medidas isoladas como reduzir a tarifa do transporte público ou vetar uma emenda contrária a princípios constitucionais, essas pessoas não acreditavam na possibilidade dessas pequenas ações virem a corrigir os problemas verdadeiros deste país. Havia pessoas convictas de que a mudança que deveria ocorrer era no sistema de representatividade política.

      O interessante nessa história é que a própria existência das manifestações espalhadas por todo país, organizadas através de redes sociais pela internet, pessoa a pessoa, sem a concorrência de lideranças instituídas, sem o atrelamento a partidos políticos, foi a chave fomentadora da idéia de que o sistema democrático podia e devia ser mudado. Questões como: o povo não poderia ser o próprio representante de suas vontades? Por qual motivo ainda precisaríamos de representantes políticos, se a multidão pudesse expressar o seus verdadeiros anseios através da internet com a velocidade de um raio? Qual a necessidade, honestamente falando, da existência de partidos políticos? Cada ser humano, numa comunidade moderna, não pode ser representante de si mesmo?

      Alguns intelectuais começaram  a reparar com maior atenção nas imperfeições do sistema legislativo vigente àquela época. Tornava-se cada dia mais patente que a vontade do povo era indireta e distorcidamente representada pelas câmaras municipais, pelas assembléias legislativas, pelo Senado e pelo próprio poder executivo. Esses intelectuais viam nesse sistema uma herança imperfeita da revolução francesa de 1887, embora histórica e considerada como enorme avanço democrático no século XVIII. Consideravam esse sistema como fruto da incapacidade tecnológica existente até então em produzir meios práticos para que a população espalhada em grande extensão territorial manifestasse prontamente sua vontade. Esses intelectuais alardearam aos quatro ventos a mudança da realidade: em dois mil e treze, cento e vinte e seis anos após a revolução francesa e em plena era da informática, se era possível organizar de um dia para outro uma manifestação de milhares de pessoas em um canto qualquer do país, também deveria ser possível obter a opinião dessas pessoas, através do voto direto, pela internet, a respeito de qualquer assunto de seu interesse. Apertar um botão ou, de qualquer maneira, dar seu voto por algum meio eletrônico estaria ao alcance de todos se houvesse decisão política nesse sentido. O principal aforisma defendido por esses entusiasmados pensadores era, enfim, o seguinte: - Não há mais nada capaz de justificar o voto indireto, sob qualquer ponto de vista! A tecnologia de hoje permite ao cidadão representar-se a si mesmo! Isso elimina as terríveis distorções da representatividade indireta!

      Como você viu, durante o dia de hoje, eu, cidadão comum, votei algumas matérias de meu interesse. Há poucos minutos você me viu votar contrariamente a uma viagem do 'Executivo Chefe' à Argentina usando recursos públicos, no próximo mês. Isso é nossa realidade do dia a dia no mundo de hoje. Não há mais os famigerados partidos políticos, que à sua época já eram considerados por muitos como redutos de apadrinhamento e corrupção; não há mais senadores, deputados, vereadores, funções tidas como ícones do desmando, do abuso de autoridade e da apropriação indevida do dinheiro público. Em vez disso, hoje temos os "Técnicos legislativos", uma função considerada ainda necessária para redigir os textos das normas e decisões necessárias de toda espécie. Há também os "Fiscais do Executivo", espécies de auditores independentes em tempo integral, encarregados de realizar parte de uma função outrora atribuída equivocadamente ao poder legislativo. Além deles, ainda temos administradores executivos regionais, tendo sido eliminada a antiga nomenclatura de "Presidente", "Governador" e "Prefeito" à qual você está acostumado.

      Hoje você me viu votar a permanência dos Executivos municipal, estadual e federal em seus cargos. Todos os meses fazemos isso, o que tem sido bastante salutar. Com isso, os executivos sentem-se, constantemente, digamos assim,  incentivados a agir de acordo com os anseios populares, porque se não o fizerem, sabem que serão substituídos."

      O menino refletia sobre essas palavras rememorando, ao mesmo tempo, os avanços da civilização dos quais fora testemunha nas últimas horas. Sem dúvida, o novo sistema estava funcionando! Fosse sonho ou não, a euforia causada pela plausibilidade de uma solução possível lhe adoçava a alma... Mas qual teria sido o custo e a dificuldade dessa transformação. Lembrava-se da imprecisão da resposta do velhinho quando lhe perguntara sobre isso:

      "- Nem tudo foram flores." - respondera seu amável cicerone. - "Idéias novas requerem mentes preparadas, terreno preparado e capacidade de convicção! Na época, todo tipo de contestação foi colocada em pauta: - o povo não sabe votar! - diziam os desconhecedores do sentido exato da palavra 'democracia'; - simplesmente não vai funcionar, diziam outros, completamente enganados, como você pode perceber de suas próprias observações no dia de hoje; - a internet não oferece segurança suficiente, atestavam tecnocratas imediatistas, evidentemente cegos aos enormes avanços tecnológicos a serem alcançados no futuro próximo; - não há como eliminar o poder legislativo, porque ele também exerce a fiscalização do executivo, alegavam outros, com certa razão, mas incapazes de ver as possibilidades futuras de cisão entre essas duas funções - hoje se sabe - inapropriadamente acumuladas pelo mesmo poder... Isso tudo, meu jovem, foram contestações... e apenas parte dos problemas rumo à trajetória rumo à realidade dos dias de hoje! O sistema de reavaliação mensal do desempenho dos executivos, por exemplo, no início foi altamente ineficaz: a população, revoltada com séculos de exploração e desmandos, simplesmente não permitia aos executivos - em sua maioria – a permanência em seus cargos por tempo suficiente para levar a cabo qualquer projeto administrativo de médio ou longo prazo. Houve crises institucionais seríssimas praticamente em todos os setores: na saúde, na educação, na segurança, no transporte... Mas depois as pessoas amadureceram. Tiveram de amadurecer. Aprenderam a ter um pouco mais de paciência e a usar o sistema de votação para impedir os excessos. Diria eu que ainda hoje estamos aprendendo e o sistema administrativo continua em evolução. Governantes honestos e bem intencionados surgiram em alguns municípios e tornaram-se modelo para administrações subsequentes. Um outro momento de angustiosa tensão antecedeu a época da reforma constitucional. Sim, porque foi necessária a modificação de cláusulas constitucionais que a cegueira de legisladores do passado em relação às possibilidades infinitas do futuro firmou como pétreas na constituição do país. E essa mudança, como você deve saber, constitui, por si só, uma revolução. Chegou a haver um posicionamento árduo por parte das forças armadas! Dias de muita ansiedade envolveram os ânimos naquele período. Porém,  posso dizer que tivemos, abençoadamente, o que se pode chamar de 'uma revolução branca', sem derramamento de sangue... ou quase..."

      Esse "ou quase..." utilizado pelo velhinho ao concluir sua exposição era, dentro do cenário luminoso a tocar-lhe as fibras, a chama escura reverberando penosamente no imo de sua alma. Havia questionado o ancião a respeito do significado daquela reticência, mas obtivera como resposta um doloroso "ah, meu filho, há coisas que peço a você a bondade de não fazer este velho sofrido rememorar...". Por isso sua voz se calara no momento, mas seu espírito continuava interrogando, sofrendo interiormente essa inquietação, preocupação que se acentuava ainda mais quando se lembrava de outra afirmação contundente do anfitrião: 

      "- A população brasileira hoje, meu filho, é de cerca de um terço das pessoas da sua época. Aí está, também, um dos motivos para você sentir que a cidade está mais vazia e mais tranquila em relação ao passado!"

      Mas, quando perguntara ao ancião qual a causa de tal diminuição do número de pessoas, ele fora evasivo, como se a memória dos fatos lhe fosse realmente dolorosa ou estivesse, propositadamente, ocultando algo. Estranhamente, no entanto, também soubera por intermédio de seu interlocutor que a população mundial, assim como acontecera com a do Brasil, também fora reduzida a cerca de um terço daquela de dois mil e treze. Isso o deixara absolutamente perturbado. Cenários de possíveis guerras e cataclismos invadiam-lhe impiedosamente o pensamento. No entanto, apesar da insistência ante o ancião, não conseguira extrair-lhe nenhuma informação adicional do que parecia ser um segredo inexpugnável.

      O menino foi subtraído de seus devaneios quando o ancião retornou à sala de visitas, refeito após o banho, com ótimo estado de ânimo.

      - Muito boa noite, meu amigo Pedro Celso - Disse o Ancião.
     
      O jovem, interrompido em meio a seus devaneios, retornou instintivamente, como se apenas continuasse em voz alta a linha de seus pensamentos:

      - Eu não compreendi porque a população mundial é tão menor que no meu tempo...

      Seu anfitrião fitou-o com ternura, mas os olhos denunciavam a mente acelerada, como se estivesse a um passo de tomar alguma decisão crucial. Manteve-se em silêncio por alguns minutos, após os quais seu rosto pareceu iluminar-se e, por fim, arrematou:

      - Venha, garoto! É hora de eu lhe mostrar uma coisa com a qual você jamais sonhou!


      Pedro arregalou dois olhos curiosíssimos que perguntavam sem palavras: - como? Ainda tem mais? - E acompanhou o Ancião rumo ao corredor. Um rangido suave se fez ouvir enquanto o anfitrião abria a segunda porta à esquerda.


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Gilberto de Almeida
07/08/2013




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